Em “Alice no país das maravilhas”, o autor e matemático Lewis Carroll criou situações surreais, como no diálogo de Alice com o Gato onde ela diz: “Eu gostaria que você parasse de aparecer e desaparecer de repente: eu fico tonta!”. “Tudo bem,” disse o Gato; e desapareceu lentamente, começando pela cauda, e terminando com o sorriso, que permaneceu no ar após o rosto sumir. Surreal significa algo estranho, absurdo, que não corresponde à realidade. Nos debates nas redes transparece uma figura surreal: uma régua ideológica que só tem as extremidades, como o sorriso sem rosto do Gato de Alice. Quem não apoiar Bolsonaro é petista comunista, quem não gritar “Lula livre” é de extrema direita.
O maior dos surrealistas, Salvador Dalí, recebia influências oníricas, com um processo criativo definido por ele como “crítico-paranoico”, como – sem a genialidade, pelo contrário – as teorias da conspiração sobre tentativa de assassinato do Presidente, delirantes articulações sinistras para condenar Lula ou os tuítes sem noção do 02 e do guru. Quase 30 anos após sua morte, foi feita uma exumação do corpo de Dalí, para confirmar uma possível paternidade. Curiosamente, o famoso bigode estava intacto. Até na morte ele era surreal: um bigode sem corpo.
Sempre que aparece uma crítica na imprensa ao governo, alguém nas redes retruca: nunca vi, nunca li crítica na imprensa sobre isso no governo anterior. Talvez a matemática de Lewis Carroll explique. Como o número de pessoas que se informam(ou desinformam) hoje apenas pela rede é muito maior que a soma da tiragem de todos os jornais, concluímos que a maioria das pessoas nunca leu um jornal ou uma revista, ou não lia sobre política, daí a manifestação surreal. Ora, o Mensalão começou com uma entrevista de Roberto Jefferson para a jornalista Renata Lo Prete na Folha de São Paulo. Tudo que sabemos sobre Mensalão, Petrolão, roubalheira do PT etc. vimos nas inúmeras capas de revistas, no Jornal Nacional, nas informações vazadas para a imprensa pela Lava Jato e nas charges ferinas. Simpatizantes do governo dizem que a mídia não publica as coisas positivas quando obviamente sabem de tudo pelos jornais, diretamente ou depois de replicado nas redes. A desinformação surreal fica evidente nas críticas à jornalista Miriam Leitão que escreve há mais de vinte anos defendendo uma economia liberal, com críticas severas aos governos petistas e é acusada de comunista petista.
É a lacropolítica: desinformados intolerantes e raivosos lacrando na sua bolha ideológica. Surreal, como réguas sem meio, sorrisos sem rosto e bigodes sem corpo.
Sobre o autor: Evandro Milet é consultor e palestrante e escreve artigos semanalmente sobre inovação e negócios.
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