Quem é a bola?

O futebol tem um aspecto inigualável de criar um ambiente de conversas entre o doutor e o porteiro, entre o funcionário e o ascensorista, entre o milionário e o pé rapado. A paixão e a zoação acontecem nos ambientes mais sérios. Na manifestação de 15/3 um cartaz erguido enumerava as reivindicações: 1º Educação, 2º Vasco, 3º Saúde.

O futebol tem seu folclore com figuras como o ex-presidente do Corinthians Vicente Matheus para quem “o difícil, vocês sabem, não é fácil” ou o clássico “quem está na chuva é para se queimar”. Suas contribuições para o anedotário são intermináveis como quando disse que Sócrates era inegociável, invendável e imprestável,  quando conclamava os corinthianos para naufragar nas urnas o seu nome ou quando reunia “seus braços direitos” como numa centopeia.

Há filósofos como Jardel, ex-Vasco, para quem: “Clássico é clássico e vice-versa” e Neném Prancha, massagista, olheiro e técnico, famoso pelas frases de efeito, como o acaciano “o importante é o principal, o resto é secundário” ou “Bola tem que ser rasteira, porque o couro vem da vaca e a vaca gosta de grama.”, isso quando a bola ainda era de couro.

O maior cronista do futebol foi certamente Nelson Rodrigues, que escreveu por muitos anos a coluna “À Sombra das Chuteiras Imortais” onde, no seu estilo inusitado,  passeando entre o real e o imaginário, criou figuras inesquecíveis como o Sobrenatural de Almeida que faz jogadores pisar em falso, distrai o juiz, desvia a bola e resultados óbvios são invertidos. Nelson explica: “Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana. Às vezes, num corner bem ou mal batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural.”

Outro personagem memorável, a grã-fina de narinas de cadáver, ao entrar pela primeira vez no Maracanã e observar aquele espetáculo admirável, faz a pergunta inesperada: “afinal de contas, quem é a bola?”.

Tem ainda o Ceguinho Torcedor que vai de bengala para o Maracanã, mas é capaz de discutir penalti, porque se não vê com os olhos vê com o coração. Como todo torcedor. Aliás, Nelson Motta foi preciso: “Torcedor, como o próprio nome diz, torce. Torce a realidade, a evidência, a ética e a ótica, movido por uma emoção incontrolável, em que a voz e a ação antecedem o pensamento”.

O futebol não deveria ser motivo de tanta polêmica. Os torcedores poderiam ser mais razoáveis.  Mas não consigo entender como alguém consegue torcer contra o Flamengo. Segundo Nelson “se Euclides da Cunha fosse vivo teria preferido  o Flamengo a Canudos para contar a história do povo brasileiro”.