Chame o ladrão

“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máxima de 38 graus em Brasília. Mínima de 3 graus nas Laranjeiras.” Assim uma pequena nota, no alto da primeira página do Jornal do Brasil, todo censurado, denunciava o clima do país após a promulgação do AI-5 no dia anterior.

O Estado de São Paulo publicava trechos de Os Lusíadas, de Camões, no espaço das matérias que haviam sido censuradas. O Jornal da Tarde publicava receitas de bolos, exageradas, visando a alertar o leitor de que alguma coisa estava errada. Muitas leitoras, inconformadas porque as receitas não davam certo na prática, telefonavam para o jornal, reclamando.

Muitos livros considerados “subversivos” foram apreendidos. Uma edição inteira do romance A Capital de Eça de Queiroz, foi tirada de circulação, confundida com O Capital, de Karl Marx. Uma peça de Márcio Souza, chamada Zona Franca meu amor, foi proibida pela censura, por ter críticas à Zona Franca de Manaus. Ele mudou o nome da peça para Tem Piranha no Pirarucu, simulando ser uma peça de teatro de revista, e ela passou.

A criatividade que vicejou no período JK e formou grande parte do que veio depois nas artes em geral teve que enfrentar duros golpes. Apenas durante os dez anos de vigência do AI-5 (1968-1978), cerca de 500 filmes, 450 peças, 200 livros e mais de 500 letras de música sofreram veto. Os pretextos eram vagos, como “atentado à moral e aos bons costumes” e “conteúdo subversivo”.

Depois de 100.000 cópias vendidas de “Apesar de você” de Chico Buarque, descobriram que a música se referia ao General Médici e não a uma mulher. O exército invadiu a gravadora destruindo os discos. Chico driblava a censura escrevendo músicas com o pseudônimo de Julinho da Adelaide como foi “Acorda Amor”, uma referência clara aos órgãos da repressão, que vinham buscar cidadãos suspeitos de subversivos em suas casas, desaparecendo com eles. Diante da polícia repressiva, ele chamava pelo ladrão.

A encenação de Romeu e Julieta pelo Ballet Bolshoi foi vetada por ser uma companhia russa. Logo, a peça podia ser comunista também. Absurdo também foi o caso de Antonio Romero Lago. Condenado como mandante de assassinato em 1944, com nome e currículo falsos chegou a ser chefe da Censura Federal no governo militar, cargo que lhe dava o poder discricionário de proibir a exibição de qualquer filme no País.

Depois de 50 anos do golpe, está na hora de apagar essa triste lembrança de uma ditadura ridícula além de violenta que, por incrível que pareça, ainda tem saudosistas.

Evandro Milet é empresário