Poderíamos fundar uma nova religião: o startupismo. Os devotos startupeiros acreditam que quando morrem, a sua alma vai para o Vale do Silício, isto é, se eles já não estiverem prometidos para o verdadeiro inferno de quebrar em outro vale, o Vale da Morte, onde a maioria fica.
No seu nascedouro, a família e parentes batizam a startup, abençoada em seguida por investidores-anjo até sua primeira comunhão (ou bar mitzvah) com o seu product market fit. Depois, é muito sacrifício, muita penitência e rezar para a coisa dar certo.
Há modelos de negócio que precisamos de muita fé para acreditar, mas os religiosos startupeiros acreditam e muitas vezes percorrem uma via crucis onde pagam todos os seus pecados até serem ungidos pelo mercado, ou não. Há que se ter fiéis, como em toda religião e existem indicadores fundamentais que devem ser acompanhados, como o CAC – Custo de Aquisição de Crentes e o LTV – Life Time Value que calcula o valor gerado pelo fiel ao longo da sua relação com a startup, até o juízo final.
A Apple, como aquela do pecado original, tem fiéis e eles dormem na fila para um novo lançamento, como um pecador aguardando água benta ou a hóstia consagrada. Mas tem que ter lado, ou é Apple ou é Samsung, afinal não se pode servir a dois senhores.
Há os profetas que anunciam o futuro, alguns prevendo maravilhas trazidas pela tecnologia e outros antevendo ambientes distópicos, num mundo de fake news, invasão de privacidade, sequestros de dados, robôs humanoides incontroláveis ou mesmo uma bolha da internet amanhã.
O startupismo também tem seus santos: São Jobs, sempre com sua batina preta de gola rolê, São Bezos vendendo livros sagrados, São Gates e o seu Santo Office e o mais recente, São Altman e seu GPT onipresente e onisciente.
Não tem multiplicação de pães, mas tem crescimento exponencial na venda dos produtos e a escalabilidade é o nirvana para os discípulos do startupismo, ainda mais se seu software estiver na nuvem do céu, a salvo dos hackers infiéis.
Nos ambientes de inovação, templos do startupismo, os noviços aguardam o momento da epifania, pagando o seu dízimo de aluguel e aguardando o cashback divino. Se bater uma dúvida de fé ou um obstáculo aparentemente intransponível, que consulte o ancestral oráculo Google ou seu novo substituto com todas as respostas ou aguarde por um milagre. E se sua startup for de Inteligência artificial, será um caso de NVIDIA ou morte.
Toda startup há que ter sua visão, sua missão e seu propósito para se lançar no mercado e conseguir discípulos que lhe garantam receita recorrente até, se possível, transformá-lo em um unicórnio abençoado, em um IPO no altar celestial da Bolsa de Nova York, ao som de trombetas. Se não for dessa vez, pode ser na próxima startup ou pode até ter sucesso várias vezes. O mercado valoriza a reencarnação sucessiva de empreendedores seriais em novas vidas empresariais.
A religião permite que sócios montem negócios, mas sociedade em startups também é coisa complicada muitas vezes. Traições por quaisquer 30 bitcoins acontecem e até irmãos se estranham, como Esaú e Jacó, por um prato de lentilhas ou uma porção de equity.
Que as startups não se percam no que é considerado o maior pecado: fazer um produto que ninguém quer, caso em que não conseguirá investidores nem na bacia das almas digitais. Se falir não dá para ressuscitar, mas sempre há tempo de se arrepender e pivotar, ainda mais se encontrar um bom samaritano que banque um novo aporte.
E quando tudo tiver dado certo e estiver a dois passos do paraíso, fique por lá.
A dois passos do paraíso – a religião das startups – ES360
Publicado no Portal ES360 em 04/08/2024